" É inevitável a fórmula: o sol que desce no horizonte é assim a modos uma vida que se acaba. Há também o recurso ao lirismo ao alcance de todas as quadras: o sol afunda-se num mar de sangue, envolvido na mortalha rubra das nuvens, lançando espadas de fogo. Espíritos mais cientificos ou mais presos às leituras de huventude arregalam os olhos para apanharem o último raio de luz - o tal raio verde de que falou Júlio Verne.(...)
É um momento em que os nossos males perdem importância. Inscrevem-se numa grandeza cósmica, apocalíptica ( cá vem a rétorica de ocasião) - e tudo quanto é nosso se torna insignificante. Sai-se conformado de um pôr-do-sol, resignado e, de algum modo, humilde.(...)
Simplesmente, o mesmo sol que nos levantou os alçapões da melancolia e nos mediu com um metro demasiado curto para o nosso orgulho surge no dia seguinte, violento, agressivo, mostrando a seco e a cru as arestas vivas da nossa condição de seres desajustados, insatifeitos, inconformados. Então, sem as emoliências da luz arrastada, descobrimo-nos outra vez no corpo-a-corpo com a realidade - e a luta recomeça. O que doía volta a doer. Pois assim seja.(...)
Tem o sol isto de bom: é mestre de todas as lições. Pai da nossa vida, companheiro, filósofo que nos conhece desde sempre, espetador de misérias e alegrias: o sol.
Vai agora desaparecer. Até amanhã. "
José Saramago - Deste Mundo e do Outro/ Crónicas
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